quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Contos das focinhadas



Outro dia estava eu lá com as vaquinhas. Fui espalhar as serragens para cobrir as partes molhadas e as merdas. É justamente fazendo isso que os bezerros ficam mais agitados, dão cabeçadas, correm, encaram e quando menos se espera vem um focinho curioso fuçando no toba alheio.

Já estava tentando entender porque eles ficam tão agitados nesta hora a algum tempo.
Mas sem sucesso algum continuei tomando focinhadas no toba.
Então alguns dias atrás comecei a prestar mais atenção em algumas coisas.
Eles são muito sensíveis ao meu estado, então olhei pra mim e perguntei de boa, como eu to hoje? Percebi que apesar de me sentir bem e achar que estava tudo certo, na hora que eu estava jogando as serragens eu ficava muito preocupado em olhar pro chão e ver onde precisava de serragem nova, como não queria tomar focinhada no rabo, tentava passar despercebido ignorando os bezerros. Isso nunca funcionou. Passei a olhar pra eles, prestar atenção neles. Percebi uma leve mudança só com isso, mas ainda sim eles continuavam agitados, e acabou virando uma brincadeira de “congela”, “to te olho em você”, “sai de trás”...
No outro dia continuei pensando, “porque será que eles ficam tão agitados?”
E mesmo achando que está tudo bem comigo (hoje to de boa), percebi que na verdade não gosto muito de fazer esse “trabalho”, tem que ficar entrando e saindo do quarto pra buscar serragem e é um saco! Percebi que enquanto estou fazendo isso já estou pensando em quantos quartos faltam pra fazer, e quando procuro não pensar nisso e focar só no quarto que estou fazendo e fazer sem pressa, percebo que pelo menos estou pensando na pazada seguinte.
Então peguei uma caixa maior, enchi de serragem e deixei perto da entrada do quarto.  Experimentei fazer desse jeito. Percebi que assim eu acalmava a ansiedade dentro de mim de ficar pensando em terminar logo, e então fui me acalmando de verdade, deixei minha respiração ficar mais lenta, meus movimentos lentos, e na minha intenção quis fazer bem feito pros bezerros, levando o tempo que fosse necessário.
Ai eu comecei a curtir estar lá fazendo isso. Prestei atenção neles, procurava encontrar o melhor caminho pra caminhar entre eles. Antes eu tinha esquematizado uma ordem; entro por aqui, jogo ali, ando por este sentido, jogo do fundo e vou vindo pra frente, etc...e se um bezerro estivesse no caminho, ia pedindo licença, ou dando um empurrão mesmo, pois eu queria ir por ali. Desta vez quis ficar mais aberto e prestar atenção no que acontece em cada momento e tentar descobrir um jeito de fazer na hora que a necessidade vem. Se um bezerro está no caminho, vou jogar serragem em outra parte, ou contorno ele, mas na hora que precisa jogar ali, ele pode sair também, não precisa ser nenhum escândalo.
Justamente neste dia eu tinha que fazer dois galpões a mais do que geralmente faço, bem nos galpões mais difíceis.  Conforme fui fazendo assim, prestando atenção neles, em mim e ir descobrindo momento a momento como fazer, percebi que nenhum bezerro tinha se aproximado muito de mim, eles viam que eu estava ali e me deixavam caminhar entre eles sem muita agitação, e a melhor parte é que não tinha tomando nenhuma focinhada no toba.
Ai eu comecei a me entusiasmar!  E pensar que ainda faltavam dois galpões pra fazer...”será que vou conseguir fazer tudo sem tomar focinhada?”
Mas logo que pensei isso percebi que seu fosse dar corda pra esse pensamento eu ia me desviar do que estava fazendo e tudo iria por água abaixo, quis me manter atento, concentrado...ai num quarto veio um bezerro que começou a querer chegar mais perto, começou me encarar, dar cabeçada...”não filho da puta, hoje tenho que ficar na focinhada zero” então outro movimento começou dentro de mim, comecei a ficar com raiva do abestado.
Então pensei “espera um pouco Miguel, qual o sentido disso tudo?”...”você tá fazendo tudo isso pra se sentir controlando?” porra mano é só uma focinhada no toba! É chato, mas não é o fim do mundo, é natural o bezerro querer dar cabeçada...percebi que na verdade eu comecei a pensar que queria encontrar a forma de entrar no quarto dos bezerros sem agitá-los, queria ser especial o suficiente pra conseguir fazer isso, e depois contar pra alguém..ou colocar no blog. Então lá estava eu começando a fixar uma ideia novamente, começando a esquematizar novamente.
Então continuei prestando atenção nas coisas, mas desencanei de chegar ao resultado “toba zero”. Se quiser dar cabeçada fazer o que? Tudo bem ué.
E fui fazendo assim...
Nos últimos quartos esse pensamento voltou, pois sem me preocupar estava de fato conseguindo me manter na “focinhada zero”, e estava muito gostoso, pois eles ficavam, na maioria das vezes, deitadinhos e não ligava muito pra mim. E eu estava com sentimento bem calmo e curtindo cada quarto, cada relaçãozinha que se estabelecia com cada vaquinha...não queria perder isso...ai lembrei dessa coisa de comemorar nossos feitos.
Isso acontece comigo quando, por exemplo, estou aprendendo a tocar uma musica. Eu Ralo, ralo, ralo pra entender as notas e tal...quando finalmente consigo tocar, fico tão feliz que minha atenção se desvia e na vez seguinte não consigo tocar direito.
No teatro e nos jogos de coordenação em grupo, isso também é bem freqüente, e acontece com todo mundo. Exatamente na hora que a gente percebe que está conseguindo manter o jogo coordenado é justamente a hora que exige mais atenção, pois o entusiasmo é sempre tão forte, natural e gostoso que na hora que a gente dá bola pra ele um segundinho a mais...erra o tempo..a bolinha cai, bate o bastão no pé..cai na risada!
Igual esse goleiro que comemora antes da hora.




A mente se dá por satisfeita, vai pra outro lugar que não é o momento presente.
Sei lá!
Então veio um entendimento bem interno do que é o equilíbrio.
Não foi intelectualmente, não foi de estudar e tal...
Foi quase sem querer, de observar a vida mesmo.
O equilíbrio em todos os sentidos.
Pra não cair, não desviar, não deixar de olhar, pra não ficar muito triste.
Que equilíbrio é esse? Equilíbrio de todo dia.

Epílogo

Mas tudo isso é como eu vejo e construo o sentido pra mim mesmo.
É como eu investigo a mim mesmo.
Na verdade como foi?
Agora na hora de escrever tudo fica mais distante de como foi a experiência. É meu pensamento analisando e construindo uma dramaturgia.

A Momoko me disse uma imagem bonita e fiquei pensando nela:
De que nós humanos, assim como as vaquinhas e tudo mais, somos como galhos de uma mesma árvore balançando no vento.

Então quando um bezerro vem e me dá cabeçada é como um galho dessa árvore que se moveu com o vento. 
É da natureza dele fazer isso. 
A maneira como a gente sente isso, interpreta etc...é o pensamento humano. Que também faz parte da natureza de ser humano. 
Mas é só o pensamento.

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