segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Uma pausa-transição


Não existe descoberta se a rota já é fixada. Pode-se aprender a içar e a abaixar velas, a lutar contra as correntes, a usar os ventos contrários. Durante esses dias, falamos do aspecto artesanal do trabalho, o primeiro e o segundo nível de organização. Mas o terceiro nível, o da totalidade, das polaridades que coexistem, o da ação no contexto, o momento no qual o nosso temperamento e a nossa biografia nos guiam a constituir e a atravessar um labirinto, a entrelaçar os fios, a apertar o nó final, é o resultado de uma injustiça existencial. Alguns a alcançaram, outros não.
É possível atingir uma nova praia navegando sem uma rota claramente definida. Conhecemos apenas as técnicas para navegar. Não sabemos se atingiremos o continente sonhado. A consciência de nossos limites nos atormenta: talvez, dessa vez, não chegaremos. O fio de Ariadne é o trabalho cotidiano, a concentração sobre a aparente simplicidade de cada ação artesanal que nos guia na névoa que nos desorienta. Com a precisão essencial da ação que poderá ser a última.
Obviamente nenhum de nós deseja sofrer, expor-se à insegurança ou viver em estado de crise. Mas uma nova orientação só é possível como conseqüência de uma desorientação. Na nossa vida, uma crise pode ser uma pausa-transição, na qual a nossa experiência se prepara para saltar numa nova órbita, que revitaliza as nossas energias.
Estar desorientado significa que as soluções e respostas que possuíamos antes já não nos satisfazem. É o nascimento de algo novo, “nove meses” de gestação, com náuseas, o vomito, a sensação de que o corpo físico e psíquico está se deformando. Nesse periodo de desorientação, toda nossa experiência anterior trabalha para buscar um novo modo de manifestar-se, abandonando a casca segura dos hábitos que agora nos atrapalham.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Vipa 38

Durante a gincana dessa vila fiquei no topo da caixa d´água do salão.
Durante a gincana dessa vila fiquei no topo da caixa d´água do salão.
Fui a veia surda! “Heim”??
Demorou muito para os primeiros grupos virem. Lá de cima pude ver todas as crianças correndo de uma brincadeira a outra...vi as crianças tentando pegar o totó, ouvi as crianças tentando fazer o Buda rir...
Enquanto esperava fiquei pensando:  O que a gente tá fazendo aqui? Então veio uma sensação de estar em suspensão, e mesmo que pra mim, o vazio faça mais sentido que a existência, lá estava eu e todas essas coisas existindo. Nesse momento olhei para baixo e vi o Axell correndo das crianças, a Clarinha fazendo a centopeia, o Dani, o Well, o Leo. Tinha o céu, tinha a terra e tinha eu, tinha um monte de gente, tinha muitos amigos meus.
 “Faz sentido”.
Houve muito esforço sim, fiquei cansado sim, coloquei toda minha energia sim. Quanto mais detalhes procurei enxergar, detalhes infinitos surgiram. Será que sou capaz de manter a essência da vila viva? Será que consigo vê-la? Então me pareceu que a questão não era ver a essência e deixa-la viva, mas mesmo sem saber ao certo qual é a essência, cuidar para que eu mesmo não a impedisse de estar presente.
Afinal eu sou só um, a vila é um monte de gente. Gente fazendo existir o ambiente.
Foi incrível! Essa Vila foi um golaço! Foi redonda! Foi quentinha apesar do frio!Foi muito engraçada, divertida e também muito rica!
Nos diários quase todos colocaram que não queriam que a vila terminasse.
Eu também.
A Débora, de oito anos, no último dia ficou parada na frente de todos os cômodos do salão só olhando. Olhou o banheiro por um tempo, olhou os quartos por um tempo e quando a Tati perguntou o que ela tava fazendo ela disse: “estou guardando pra não esquecer”.
Eu também não quero esquecer.
A Mari de 12 anos se despediu com os olhos cheios de água.
Eu também.
Quando a vila terminou o Jota, a Tati, a Claudia, a Carla, o Fábio, o Well, quiseram ficar um pouco mais e dormir mais uma noite.
Nós ficamos.
24 horas depois eu tive a primeira refeição sozinho. Sem soquinhos na cara, sem mordidas, sem siriemas capazes de fazer o Chuck Norris chorar como uma menininha.
Somente silêncio.
Comi e voltei para o salão, pra terminar de limpar tudo, pra fazer até o fim.
Pela primeira vez completamente só.  Lembrei-me da manhã em que espalhamos esterco na horta e suados olhamos por um momento para o que tínhamos acabado de fazer. Somente contemplamos um pouco.
Fiquei olhando a vila vazia. Só olhando.


Não durou muito, logo desceu a Inês, desceu o Felix, o Leo depois o Axell.
Não fiquei sozinho antes, e vi que não ficarei.
Que bom saber!
Que bom saber que todos nós gostamos dessa Vila.
Que bom!
Juntos nós demos um pulo que durou uma semana, cheguei ao chão plainando.
Que bom!
E agora estou com a sensação de que voltei pra vida sentindo saudades de casa. Um gostinho no coração de que essa casa é o paraíso.
Feliz de saber que essa casa é possível existir nessa vida.
O paraíso são os outros.
A Vila paraíso somos nós.


terça-feira, 5 de junho de 2012

Deste modo ou daquele modo

Deste modo ou daquele modo.
Conforme calha ou não calha.
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a
nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me
ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer
como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.
Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.
Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XLVI"
Heterónimo de Fernando Pessoa

segunda-feira, 4 de junho de 2012

De quem é esse pensamento?



Ao ver o mundo do espaço não é possível ver as fronteiras, não se vê onde começa um país e termina outro. Daqui de baixo encontramos placas nas estradas dizendo onde é a divisa entre uma cidade e outra, nesta placa acaba Valinhos e começa Campinas, naquela outra deixamos para trás o estado de São Paulo e somos recebidos com boas vindas pelo estado do Rio de Janeiro. Nos aeroportos existem as alfândegas, onde somos interrogados. Querem saber quanto dinheiro temos, de onde estamos vindo, qual a finalidade da viagem, quanto tempo vamos ficar, onde vamos hospedar e quem irá nos receber. E podem negar nossa entrada.

“O primeiro que tendo cercado um terreno se lembrou de dizer:"Isto é meu", e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: "Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdido se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém"





Será que a nossa mania da posse não está ligada à mania de colocar divisões nas coisas?

Por exemplo, se comermos uma maçã, em que momento exato ela começa a fazer parte da gente? Na boca? Quando o processo de digestão se inicia? Mas espera! Podemos começar a salivar antes de mordê-la, apenas com a imagem da maçã, ou com a idéia de maçã. Mas ela não está dentro de nós! Opa! Mas está na nossa imaginação e já está fazendo efeito em nosso organismo, afinal nossa imaginação também faz parte de nós! Mas a maçã em si, concretamente, não está dentro de nós! Então será que é mais pra frente?E se cuspirmos o bolo alimentar antes de engolirmos a maçã? Então temos que engolir? No estomago então? Mas e se vomitarmos? Então será nos intestinos, quando as propriedades da maça são absorvidas pelo corpo? Será então nas células? Algum cientista pode nos ajudar?
E quando a maça deixa de fazer parte de nós? (...)

Quem é que está decidindo? Quem está colocando as fronteiras das coisas? Debateremos até que aja consenso? O consenso será a verdade? Para algumas pessoas faz mais sentido ser nos intestinos, para outras a intenção de comer a maça já as satisfazem como sendo o momento em que a maça faz parte de nós. Algumas pessoas podem dizer que a maça e nós não são duas coisas diferentes, podem argumentar que a nível atômico fica difícil ver a separação, a nível molecular talvez exista, mas então é uma questão de que ponto de vista escolhemos? Mas independente do ponto de vista, como será mesmo?

Pessoalmente o que mais me interessa dessa pesquisa toda, é ver como eu funciono, e dos pontos que dentro desse funcionamento me sinto próximo a todos os humanos. 
Pensar nisso tudo me mostra como os conceitos humanos são frágeis e do quanto eu tomo eles como algo sólido. E fico me perguntando em quantas situações não estarei tomando minha forma de ver o mundo como a realidade em si. Quantas vezes eu coloco divisão nas coisas, quantas vezes coloco algo como propriedade minha. Isso tudo é natural, eu faço isso todos os dias, vejo muita gente fazendo. Não acho errado achar que as coisas são nossas, ou mesmo didaticamente, fazer divisão nas coisas.
"Vamos combinar que daqui até aqui é mão. Depois começa o braço!" 
Mas acho que confundir o que foi combinado como algo que é inerente a natureza, gera muitos conflitos. Vejo isso ao meu redor todos os dias, nas relações internacionais, na política mundial, na política nacional, na política dentro das universidades, na escola, dentro da sala de aula, na cabeça dos alunos, na minha vizinhança, dentro da minha casa, nos meus relacionamentos e comigo mesmo. 

Nós não tomamos como nosso, somente as nossas coisas, mas também as pessoas.
"Estes são meus amigos, esta é minha namorada, esta é minha mãe, meu pai, minha família."          
Tomamos como nosso também a função que queremos desempenhar na vida.
"Esta é minha carreira, minha profissão, meus estudos, minha pesquisa, meu sonho, minha vontade, minha felicidade. "
Tomamos como nosso até os pensamentos que passam na nossa cabeça.
"Quem pensa isso sou eu, é assim que eu penso, se alguém quiser fazer uma citação sobre isto, por favor, me dê os créditos!" 
Nossa! Deixa-me dar os devidos créditos (como se faz nas teses). 
A primeira citação foi de Jean-Jacques Rousseau. Ao resto fica meio difícil dar os créditos, a coisa de não podermos ver as fronteiras dos países do espaço já ouvi isso muitas vezes de muitas pessoas, o Dalai Lama dá este exemplo no livro: A open heart. O Romeu costuma usar este exemplo no tokkou. De onde ele tirou isso não sei. A propósito foi do tokkou que tirei este tema. A coisa da maçã vem de um punhado de pessoas com as quais já sentei pra conversar sobre isto.

Eu mesmo não saberia dizer exatamente de onde vem cada coisa que influencia meu modo de pensar, nem a extensão de como elas determinam o próprio funcionamento de minha mente. Pelo menos já começo a perceber que isto ocorre e fico mais atento vendo isto acontecendo atualmente. Ter olhado pra trás me ajuda muito, foi o meu Naikan. 
Sou formado pelos encontros. Deste com a minha mãe a todas as pessoas que passaram pela minha vida. Cada uma fazendo sua marca de um jeito, determinando meu jeito de ser e meu modo de experiênciar a vida. Olha só fiz de novo, “meu” modo de experiênciar a vida.

Este pensamento, de quem é?

terça-feira, 24 de abril de 2012

Quase 9 teatro aqui no Yamaguishi.


Nesse fim de semana veio o pessoal da Quase 9 teatro aqui no Yamaguishi fazer uma vivência comigo e com a Aninha.
Quando e Léo me contou do projeto eu achei que tinha tudo a ver com tudo que estou passando.
Não só o caráter do projeto de lidar com a memória e os depoimentos pessoais (que me chamou atenção por ser um curioso em querer saber porque nós somos assim), mas também por ser com professores. Isso tudo me ajudou a dar uma esclarecida em muitas questões que tenho dado especial atenção nos últimos tempos.
Educação, arte, vida, relacionamentos, amizade e jogo.
Que jogo é esse que jogamos todos os dias?
O jogo de estar vivo.
Quando digo jogo aqui, tenho em mente uma conotação neutra, sem polaridade.
Não é um jogo de tramas, um jogo de artimanhas, como se a viver a vida pudesse ser vista como um jogo de estratégias lógicas.
Tenho mais próximo de mim o jogo como brincadeira.
Tem tramas também nas brincadeiras, tem artimanhas também, e é claro que precisa ter estratégias. Mas a atitude do jogador é diferente da atitude de quem brinca.
Quem brinca também é jogador, mas nem sempre quem é jogador está brincando.
O importante é dar atenção na pessoa que está em jogo com a mesma importância que se dá ao grupo de jogadores.
Dar a mesma atenção na forma como deixamos o "bastão" pra quem está vindo, como pra pegar o "bastão" para onde estamos indo.


Além dessas duas atenções, dar a mesma importância em você mesmo, no seu ponto zero, ou ponto de equilíbrio.
Não me parece que a direção é uma só, uma concentração em um aspecto só, que se fecha cada vez mais. Mas sim uma atenção para coisas que acontecem ao mesmo tempo e que é possível perceber todas elas, então eu lido com elas, dando a mesma importância para cada uma. 
Nesse sentido os sentidos se abrem, a atenção se amplia e meu coração se abre também.
Quanto mais eu jogo e brinco mais gostoso fica.
É brincar sem se levar a sério com seriedade.
E com tantas idéias subjetivas para falar do jogo-brincadeira, ele é o espaço do real, do concreto e do palpável.
Onde a vida fica simples de se entender.











Voltem mais, voltem logo, voltem sempre.

Entrem no site quase9teatro.com.br


segunda-feira, 16 de abril de 2012

O Hibisco e o naikan.

Eu plantei este Hibisco no último dia da última Vila paraíso, mais ou menos 4 meses atrás.
Durante o naikan eu vi o primeiro botão de flor nascendo, durante a semana fui acompanhando seu crescimento.
Vi as formigas andando sobre ele...eu nem pus a mão.
só molhei.
No último dia, quando eu acordei a flor tinha desabrochado.


Naikan


Basicamente o naikan foi pra mim um olhar interno extremamente profundo. Olhando a minha própria história foi riquíssimo começar a ver como cada lembrança se faz presente na pessoa que sou hoje. Eu comecei a entender melhor de onde vem cada coisa que faz eu ser assim desse jeito. O que minha mãe fez por mim, meu pai, as pessoas próximas, amigos e mesmo eu sendo assim cego pra muitas coisas, cheio de coisas pra resolver, posso ser feliz e viver uma gratidão profunda pelas pessoas e pela vida. É mais ou menos isso que estou sentindo.




Vim fazer Naikan, pois quando soube através do Alam, e conforme fui sabendo mais a respeito do Naikan, mais importante parecia poder fazê-lo.
"Examinar a minha própria história", "Porque este [eu] é assim?”.

Voltar a minha atenção para as memórias mais antigas em relação a minha mãe não foi fácil no primeiro dia.
E durante todo este primeiro exame percebi que minhas lembranças estavam bagunçadas. "Quando foi isto?", “isso aconteceu mesmo?", "será que foi assim?", "essa lembrança é minha mesmo ou será que é algo que foi contado para mim?".
Porém pouco a pouco, conforme ia continuando, fui conseguindo criar um mapa com as datas aproximadas dos eventos que me marcaram mais, tendo o período escolar como referência.
Com esse mapa "mais ou menos" feito, consegui focar com mais tranqüilidade em cada período e então as lembranças em relação a minha mãe foram surgindo e pude começar a enxergar uma trajetória.

O que a minha mãe fez por mim?
Como retribuí?
Que problemas causei?

Foi a partir do terceiro dia que procurei ficar mais tempo em cada lembrança, e então a olhar com calma, a fim de ver o conteúdo.
Quando eu era criança minha mãe fez tudo por mim.
Eu era completamente dependente dela.
Se eu comi, foi porque minha mãe me alimentou.
Lembro de um dia que comemos peixe na vizinha, minha mãe tirou os espinhos para mim.
Se eu tomei banho, foi porque minha mãe me banhou.
Se fiz cocô, foi minha mãe que limpou e depois que me ensinou a me limpar sozinho.
Se eu fui à escola, foi ela que me levou, comprou os livros, encapou os cadernos (com plástico azul em xadrez), me vestiu com os uniformes (camiseta branca com o símbolo do colégio Externato São João, bermuda azul marinho, tênis, meia, nessa época não podia ser qualquer meia. Não podia ter costura grossa, pois eu tinha aflição...)
Quanto trabalho eu dei!
Seguindo assim cada evento, lembranças "reais" surgiam,
Nessa época onde a gente morava?
Como era o prédio?
Como era cada cômodo? Detalhadamente... A vizinhança...
Tudo que eu fiz, tudo, minha mãe estava diretamente envolvida, provendo tudo, fazendo tudo, cuidando de tudo.
Tudo isso ela fez por mim.
Eu nada fiz como retribuição.
Nem consegui enxergar as coisas que ela estava fazendo.
Absolutamente cego.
Os problemas que causei... Foram tantos... Fiquei doente muitas vezes, Briguei com minha irmã, me machuquei, fui mal na escola, quebrei coisas em casa.

O ano de 1994 foi pior.

Além dela estar passando por um período de muita tristeza com o divorcio, ainda teve que lidar com um adolescente teimoso, mimado, briguento e revoltado.
Nesse ano matei muitas aulas de matemática, fiquei de recuperação na escola, inventava mentiras, coloquei minha mãe em situações vergonhosas.
Ela vinha estudar comigo, queria me ajudar com as lições (até isto ela fez por mim).
Como eu retribuí? Falei que ela tinha bafo!
Falei que ela nunca estava presente como as outras mães.
Disse coisas horríveis com vontade de magoá-la.
Mas ela continuou fazendo coisas por mim.
Lembro-me de muitas coisas agora.
E com todo este trabalho...Não lembro de ter dito obrigado!
Foi assim à vida toda.
Quando se é criança é difícil retribuir, ter discernimento para perceber essas coisas.
Mas eu continuo cego para minha mãe até hoje.
Continuo mimado igual, achando que as coisas que ela faz para mim são óbvias.
Tão óbvias que nem consigo ver.
Ela continua ainda hoje fazendo muitas coisas por mim.
Ela continua por trás de tudo que eu faço.
Ela só quer eu seja feliz.
Em tudo que ela fez por mim, em cada detalhe, desde que eu nasci, todo gesto, pensamento voltado para mim, é uma extensão de seu amor.

Quando fui começar a examinar em relação ao meu pai, tive receio, achei que não ia ter muita coisa.
Eu tinha um sentimento em mim que por causa da separação ele tinha ficado distante e mais ausente.
Eu tenho atualmente uma relação muito boa com meu pai, então achava que eu não tinha nenhum rancor.
Durante o naikan todos esses sentimentos ficaram expostos, porém ao examinar com cuidado ano por ano eu vi que na verdade ele foi um pai muito carinhoso e presente e que ele fez muitas coisas por mim.
Olhando o período da separação dos meus pais eu percebi que com tudo isso eu vi meu pai como homem muito cedo, um humano normal, vi minha mãe como mulher.
E a partir de então minha relação com meu ele foi muito mais de amizade.
Isto é algo incrível que ele fez por mim.
Mas ele não é um simples amigo, ele é meu pai, fez muito mais por mim do que eu pude retribuir.
Fez muito mais por mim do que eu pude agradecer.
Fui cego também em relação a ele.
E causei muitos problemas.
No Naikan lembrei uma porção deles.

Depois examinei em relação a minha noiva.
Eu comecei achando que eu estava fazendo mais por ela, do que ela por mim.
Quando comecei a examinar não conseguia ver as coisas que ela estava fazendo.
Então percebi que examinar a relação de casal é mais difícil que a relação com os pais, pois não se dependente disso para conseguir comer, vestir...
Então, novamente, vou deixando de ver as coisas que ela faz para mim.
Ela fez sim, depois fui lembrando.
O que me deu medo foi ver que com o tempo eu não percebia mais as coisas que ela sempre fez. Por que essas coisas ficam "óbvias"?
Eu passei a ficar cego também com os problemas que causei, vivendo nesta posição conveniente onde eu acho que faço sempre mais.
No Naikan eu pude rever isso, e isso me faz muito feliz. Daqui pra frente eu não quero que as minhas relações se tornem óbvias para mim.
Basicamente o naikan foi pra mim um olhar interno extremamente profundo. Olhando a minha própria história foi riquíssimo começar a ver como cada lembrança se faz presente na pessoa que sou hoje. Eu comecei a entender melhor de onde vem cada coisa que faz eu ser assim desse jeito. O que minha mãe fez por mim, meu pai, as pessoas próximas, amigos e mesmo eu sendo assim cego pra muitas coisas, cheio de coisas pra resolver, posso viver uma gratidão profunda pelas pessoas e pela vida. É mais ou menos isso que estou sentindo.

Lendo agora minhas impressões eu vi que a coisa de ficar cego ao que as pessoas fazem por mim ficou bem forte pra mim logo que acabou o naikan. O sentimento de gratidão também. 

Mas agora depois do naikan eu fico pensando em como todas essas coisas que eu tive contato, que eu vivi, das coisas que meus pais fizeram, como tudo isso me formou assim. Com a mini-vila que terminou ontem, eu comecei a pensar no quanto de vilas tem mim também. A gratidão está junto disso tudo, pois estou feliz hoje. Mas fico muito curioso nessa coisa de perceber o que está chegando em mim e como eu estou incorporando essas coisas e formando minha personalidade. Como se dá este processo? Quais conceitos estão funcionando como suporte quando recebo as influências? Quais pessoas me influenciam hoje em dia? Por que essas pessoas? Como eu estou enxergando elas? Outra coisa que também fiquei pensando é por que eu me lembrei dessas coisas durante o naikan? bem...e por ai vai...